quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Sementes da lâmina


Camponês, Aldeão.
   

     As nuvens cinzentas moviam-se disformes sob a imensidão do céu, cobrindo com a fina seda de suas sombras toda a superfície dos campos, montes e mares, sem contudo ofuscar de todo o brilho do sol, que ainda resistia sobre o excelso firmamento negando-se a ceder seu trono à fria obscuridade. De um campo elevado, olhos atentos fitam os contornos funestos a prenunciar derradeira tempestade. As nuvens dançam uma música horripilante cantada pelo invisível na voz de ventos uivantes. Faces de criaturas inomináveis surgem e ressurgem no oceano de vapor efêmero em quanto a escuridão se avoluma e se estende devorando a amplitude dos ares. 

   Compenetrado o jovem camponês contempla a preparação dos tecidos celestes à véspera do regressar da noite, sentindo o reverberar interior dos trovões que agora se faziam ouvir. Ainda maior atenção dedicava aos sublimes atores etéreos, pois a escuridade se fortalecia e de tempos em tempos um clarão seguido de um estampido ensurdecedor se fazia ouvir. Estava terrivelmente assustado e estranhamente encantado. Olhos arregalados, lábios afastados, inerte, tácito; quando um raio oriundo das trevas revelou criaturas colossais a se digladiarem além das nuvens, mas a explosão de luz e as trevas que se seguiram ocultaram a visão fantástica. 

     Debaixo de uma árvore frondosa, sentado sobre a relva verde, recostado ao tronco viçoso, o rapaz assistia absorto o espetáculo da natureza. Mas agora lembrava dos animais que ficaram aos seus cuidados pastando no campo. Era tarde, precisava partir. Ergueu-se rapidamente, avistou as cabras espalhadas sobre a planície. Havia deixado em casa a vara que usava para conduzir o pequeno rebanho, mas os animais conheciam a voz do moço,  que não tardou em berrar alguma coisa sem aparente significado. "Woah", vocalizava aos quatro ventos ajuntando pouco a pouco os animais. 


terça-feira, 17 de novembro de 2015

Amor: Quiproquó Antológico

Numa manhã pálida, nuvens dançam com a brevidade da luz. A brisa impelia as frágeis folhas das árvores, elevando-as sem rumo pelo ar. O sopro dos céus perpassava os campos e as florestas como uma música suave. Embalando pensamentos divagantes, oscilando os cabelos soutos de uma mulher.

Do alto da muralha, nas passarelas superiores, um Conselheiro da Excelsa Relíquia, contempla o horizonte, a delinear nas curvas do mundo as formas de uma deusa. E nessas idas e vindas que a guerra impõe ao caminho do valente, soube o distinto membro tribal, da existência além dos limites do mundo, o brilho da estrela que ansiava. Visto como a fama da Dama a precedia em beleza e valor, não tardou a por em papeis o coração, e a envia-lo para longe, ao encontro da formosa criatura.

As palavras aos ouvidos desta pousaram como pétalas sobre a lâmina dos lagos. Encantou-se a bela mulher, que pudesse tanta doçura atravessar os ares a encontra-la em terras tão distantes. Pincelou sobre a face da mensagem as letras de seu amor, como se o fosse a escritura, a própria face do amado. E assistiu o lento voo das aves ao encontro do entardecer. Entristeceu-se, pois, ao imaginar nunca mais ouvir semelhantes palavras do misterioso apaixonado, cogitou consigo mesma: “se tão fugaz é a vida, que dirá os sentimentos”. Fantasiava triste fim, pois havia gravado um pouco de si na insignificante página que enviara. Em direção oposta ao que fazem os corações enamorados a enaltecer aspectos divinizados de si mesmos. E revelando em linhas humoradas comparou-se ao personagem fictício e folclórico a povoar a imaginação popular. O Saci. E ria-se como lhe era próprio, da vida, de sua condição, de si mesmo. Era alegre isto sabia. E não se ocultaria em máscaras que lhe abrissem portas a um destino incerto.


O homem, a fitar o sol se recolher, viu as aves ligeiras com o regresso de sua ansiedade, e velozmente como pode acessou o outro coração, enquanto lia os lábios de um amor encoberto. Lendo, entendeu o jovem Conselheiro, que a desejada de sua alma possuía necessidades incomuns, pois a rainha de seus pensamentos mitificou-se em semelhança duma fábula. Mas o que suspeita um coração em chamas? O que é obstáculo ao amor?. Para ela um detalhe corriqueiro. Para ele, se por cuidado desmedido, ou imaginação pérfida, ignora-se, fato é que diferente do que o espírito feminino além-mundo supunha, passou o varão a ainda mais anela-la. E em sonhos ligeiros, e vultos turvos, o tremeluzente contorno de mulher se lhe apresentava. Nestas visões efêmeras da noite, o corpo do outro alguém lhe vem em imagens interrompidas. A beleza senta-se a contemplar planícies mutáveis, ao passo que oculta uma das pernas no drapeado das vestes que o vento ondula. Interpretou o apaixonado que a musa de seus devaneios era deficiente em corpo, mas em nada atenuou seu sentimento, ao contrário o intensificou, pois as cartas não revelam rostos, mas almas.



E assim são as lendas, rabiscadas nas veias dos costumes, cujos fins cantam os aedos desde o princípio a transmitir o legado perpétuo de amores vividos. No peito profundo, nas torres da força, nos abismos da alma, na paz escassa, ou abundante opulência, na ausência e na presença. É infindável o poder que a história vivifica, da brandura do afeto se prolifera a veemência da vida.
Não me perguntem sobre o fim, já o esqueci. Sei somente o que ouvi na melodia da brisa. Como um homem, se em corpo ou espírito não sei, rompeu a estrutura do espaço e do tempo. E fora até a raiz de sua insônia.

Antes do raiar do dia, enquanto dormia a jovem Duquesa, longe do julgamento, da insegurança, alheia às emulações da vida. Passeia em terras supinas, a voar entre nuvens tingidas pelo rosa luminoso, em companhia daquele ser alado. Acorda ao som do bater de asas presumia tratar-se de respostas angelicais a pedidos inexprimíveis que à noite se faz. A surpresa frente ao inesperado não tem nome, mas rosto. E desta vez as aves eram distração. O próprio conselheiro estava de pé diante da viajante onírica. Havia despistado toda a soldadesca e encontrava-se vestido como um príncipe diante da donzela. A declaração de amor que se seguiu, deixo para a vossa imaginação a surpresa do Cavaleiro ao ver sua déia em corpo perfeito. E que a expressão folclórica e descritiva de sua amada não passara de uma manifestação cômica da consequência de um acidente passado, mas cujas dores já se haviam diminuído. Conclusões apressadas que o amor proporciona. Quem nunca as experimentou?

Despeço-me por ora, que nem tudo são guerras. Mas antes fecho a cortina de âmagos desinquietos e afogueados, em cavalos a percorrer o horizonte policromático nas colinas ao alvorecer.